Filipe Cardinal: Dos Passos ao Salto

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@martinhoscosta
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Antes de conhecer o Filipe Cardinal pessoalmente, se me pedissem para o descrever numa palavra, seria capaz de dizer “motivado”. Na minha cabeça, essa era a característica que melhor o definia na íntegra. Afinal, que outra razão levaria alguém a pegar num buril para equipar vias de escalada desportiva quando não havia quase nada para escalar a Norte? No entanto, depois de duas longas conversas com o Cardi, como é conhecido na comunidade, o meu juízo de valor caiu por terra, e à data deste artigo penso que “motivado” será tão superficial para o descrever, ao ponto de me sentir envergonhado. “Conectado” talvez seja o termo mais adequado.

Filipe Cardinal - Foto de Marco Cunha (1) (DR: Marco Cunha)

Em resposta à pergunta cliché de abertura de uma conversa com alguém da velha guarda, Filipe Cardinal recorda que as primeiras lembranças do contacto inicial com a escalada não são, na verdade, muito positivas. Experimentou escalar pela primeira vez aos 14 anos, na escola de Ermesinde. Apesar de ter adorado a experiência, o entusiasmo desvaneceu-se quando, numa competição escolar, caiu ao chapar o top da via, e na sequência, o segurador deixou-o tocar no chão. Nesse momento, e nos instantes seguintes, perante a reação de quem o rodeava, sentiu-se exposto a algo extremo e perigoso. A escalada ficou em segundo plano, mas manteve-se ativo noutras modalidades como karaté, capoeira e basquetebol.

Mais tarde, a convite do seu amigo “Jota”, João Ferreira, que tinha começado a fazer rapel, foi experimentar descer a Fraga do Teto. Sentiu uma conexão especial quando tocou na rocha e perguntou-se como seria escalar por onde tinham rapelado. Ficou motivado com a ideia, decidiu voltar e com o material que tinham fizeram top rope com uma corda estática e um arnês feito com cintas. Rapidamente percebeu que era aquilo que queria fazer e, pouco tempo depois estava a entrar na Camping Shop do José Novais para gastar as suas poupanças nuns pés-de-gato, três expresses e um arnês. “Podes ter montes de problemas, mas quando entras no foco para escalar tu esvazias e vais ao corpo intuicional. Trabalhas e desenvolves um outro corpo que não usas para a maioria das coisas. Aproximas-te do teu lado mais puro.”

Filipe Cardinal - Foto de Marco Cunha (2) (DR: Marco Cunha)

Quando já estudava no ISMAI (atualmente Universidade da Maia), numa saída ao Gerês conheceu o Pedro Vasconcelos, “Botas”, com quem mais tarde teve uma empresa de trabalhos verticais. Trocaram impressões sobre as suas experiências e conhecimentos, e começaram a fazer cordada em vias de clássica e em registos de aventura, em locais como a Meadinha, Trás-os-Montes e Fraga do Cavalo (Senhora do Salto).
A primeira experiência como equipador deu-se na Fraga do Teto, quando numa das saídas rápidas em que não podiam ir entalar material para mais longe, viu uma linha evidente por onde antes costumava rapelar. Esta seria “A Esquecidinha” que diz ter demorado dois dias inteiros a furar com um buril.

Ainda na universidade conheceu a zona centro quando Fernando Branca, amigo desde o ensino preparatório e adepto de vias bloqueiras, o convidou a fazer escalada desportiva na escola da Redinha. Cardi tinha pouca experiência na disciplina mas o background de clássica fê-lo perceber que tinha já um bom nível a escalar à vista. Isto foi pouco antes de desenvolver interesse pela Serra dos Passos. Em 2003, inicia a segunda vaga de equipamento nos setores transmontanos, após a primeira investida de João Animado e Abel Fortuna em 1995. Equipou clássicos como “Quem não tem cartão não entra” e “Espírito Europesco” entre dezenas de outras vias totalmente protegidas, contrariando a tendência de escalada mista praticada naquela falésia, ainda que pontualmente tenha aberto algumas vias de clássica. Nunca o IP4 tinha tido tanto valor. Viria mais tarde a escalar e equipar em Poios quando o canhão começou a entrar na cena da escalada nacional. Aqui, formou-se gradualmente um grupo assíduo de escaladores, ou "tribo", como Cardi gosta de chamar, que partilhava o mesmo objetivo. A Irmandade da Topalhada viria a tornar-se uma referência no vale, com dezenas de vias equipadas em setores como Microondas, Nuestros Hermanos e, mais tarde, Sol Poente.

Filipe Cardinal

Por volta de 2005, depois das primeiras temporadas a equipar em Poios, numa das incursões à Fraga do Cavalo, viu reveladas as paredes do outro lado da margem após um grande incêndio na zona. Sempre teve curiosidade sobre o que lá havia, mas a vegetação densa e os comentários da velha guarda - de que do outro lado do rio não se escalava -, detiveram-no de lá ir mais cedo. Agora, com a falésia nua, só restava confirmar se a rocha era compacta. Quando se apercebeu do potencial, Cardi decidiu poupar os valiosos 10 minutos de carro que gastava entre Valongo (onde vivia na altura) e a Senhora do Salto, para começar a acampar na carrinha com o objetivo de equipar e “encadear à broca quente” de imediato o novo setor. A primeira via ganhou nome a partir de um infortúnio com o dono de uma casa na base da fraga, que facilitava o acesso ao Filipe e ao Pedro. “Uns tempos antes de ter descoberto aquilo, alguém ao desfazer-se de um veículo roubado decidiu mandá-lo pelo topo da falésia durante a noite. O carro caiu no anexo de um amigo que ali morava que acordou durante o sono com o estrondo.” O “Sonho Interrompido” tinha acabado de nascer.

Seguiram-se as Varandas do Salto, momento em que Marco Cunha começou a aparecer e a ajudar. Contou também com a preciosa ajuda de um núcleo galego muito próximo da Irmandade da Topalhada, com quem escalava nas saídas a Espanha. Recebeu deles bastante material doado, que usou para equipar a Senhora do Salto.

Filipe Cardinal

À medida que a parede ia sendo preenchida com plaquetes, começou a surgir a curiosidade de chegar à base do que é hoje o setor Suaves Prestações. Sabia de uma via aberta por Carlos Araújo em artificial (que mais tarde escalou em livre), mas não sabia por onde, nem como aceder. Conta que a primeira vez que conseguiu rapelar foi completamente abalado com a visão da pala extraprumada dando o nome à primeira via de “Salto Surpreendente”. Relembra com carinho a altura em que o Sérgio Martins e o José Abreu começaram a sentir motivação para abrir variantes e extensões, acrescentando dificuldade no setor com vias como “Sonhos Picados” que viria a ser encadeada pela primeira vez por José Abreu.

Em 2009, juntamente com um pequeno grupo do Norte, torna-se co-fundador do CEM - Clube de Escalada da Maia. Orgulha-se do clube ter crescido com o esforço e dedicação de uma comunidade bastante unida. Os associados investiam o seu trabalho, tempo e algum dinheiro para o crescimento de um muro local que pudesse ser usado para contexto de formação, competição e treino. Ainda numa altura em que os muros comerciais eram inexistentes, o CEM tornou-se uma referência para escaladores do Norte e de todo o país. O Maia Boulder Contest cresceu até se tornar uma prova querida por todos, graças ao ambiente comunitário que se vivia na organização e competição.
Quando questionado sobre o papel do associativismo no crescimento da escalada em Portugal, Cardi recorda o esforço e a importância que clubes, associações e os seus integrantes tiveram nos feitos mais pioneiros, tal como a abertura das primeiras vias na serra do pilar pelo Rui Macedo, que nos deixou este ano. Considera que hoje em dia os objetivos das associações e clubes foram sofrendo uma metamorfose. Admite que a pressão competitiva desempenhou um papel na mudança de objetivos de muitos clubes, mas rejeita julgamentos sobre essas opções.

Filipe Cardinal - Foto de Marco Cunha (3) (DR: Marco Cunha)

Refere também que não é totalmente necessário o associativismo para que as “tribos” possam realizar ações de interesse comunitário mas que para isso são necessárias pessoas com perfil agregador. Admite que desempenhava esse papel de forma natural nos grupos que integrava. Confessa, no entanto, que era uma pessoa bastante diferente, reconhecendo que o seu lado reativo contribuiu para o seu afastamento da escalada no final de 2018. “O período em que estive parado fez-me abrir os olhos e ver as coisas numa perspetiva diferente”. Saiu do Porto e mudou-se para Coja, Arganil. Decidiu deixar de fazer algo que possa chamar de trabalho, e até hoje troca a sua energia por dinheiro apenas com tarefas que lhe dão prazer.

Alguns eventos após o início da pandemia fizeram com que Cardi se aproximasse de novo da escalada. Relembra quando “Nunito” Santos pediu a sua ajuda na construção do The North Wall com a sua experiência em carpintaria e serralharia. Prontificou-se a ajudar e após a conclusão começou a fazer routesetting no novo espaço. Um pouco mais tarde foi convidado por João Sabugueiro a equipar uma prova de dificuldade no Altíssimo, admitindo que, “À altura estava sem nível mas ele ainda assim confiou em mim. Após a minha paragem fui recebido de braços abertos e não estava à espera. Estou grato ao Nunito e ao João por me terem aberto as portas. Insistiram para que abraçasse o routesetting comercial e de competição, algo que já não tinha em mente voltar a fazer”.

Filipe Cardinal - Foto de Marco Cunha (4) (DR: Marco Cunha)

Ainda por essa altura, foi contactado por Bruno Gaspar que procurava ajudar o município de Vila Nova de Poiares a desenvolver escalada nas falésias locais. Depois de, juntos, avaliarem o Penedo da Desgraça perceberam que havia potencial para um setor, que mais tarde viriam a equipar juntamente com João Évora e Rodrigo Lemos “Rodas”, sob a égide da FPME - Federação Portuguesa de Escalada de Competição. No entanto, foi a descoberta do setor Rua Sésamo que arrebatou verdadeiramente Cardi: “Guardo memórias muito boas dessa descoberta e de ter equipado essas vias fáceis. Dá-me prazer dimensionar e colocar-me na pele de crianças e adultos que vão ter a primeira experiência naquela parede. Nas viagens que fiz a França, vi micro setores, que apesar de estarem envolvidos por setores maiores, a sua composição geológica era perfeita para crianças e eram equipados especificamente para elas. Aquilo é algo que eu estava constantemente à procura por cá e nunca tinha encontrado. Vou lá escalar algumas vezes com a minha filha, e chapo-as todas!”

No último ano interessou-se pelo routesetting para atletas mais jovens, exercendo um trabalho muito próximo com as nossas promessas, nos estágios da seleção. Assume que ainda que não se reveja em muitos dos detalhes que constituem o projeto Olímpico, quer fazer parte dele acreditando que a sua vivência e visão podem ajudar os jovens atletas a perceberem o seu papel. “Se estás neste mundo a encarar uma personagem, faz com que seja numa peça de teatro em que o público no final tenha gostado de ver”. Recusa o papel de mentor mas gosta de munir os atletas com as ferramentas que precisam para o foco e estabilidade nas competições. “Gosto de os fazer perceber que o baixo da onda também faz parte e que se deve valorizar e potenciar o esforço acima do resultado.”

Filipe Cardinal - Foto de Marco Cunha (5) (DR: Marco Cunha)

Hoje, para além dos papéis que desempenha na FPME, no NES - Núcleo de Escalada de Soure, e como routesetter em rocódromos e competições, Filipe Cardinal assume também a personagem de “dispersor da semente” numa associação de reflorestação. Dedica-se a projetos de agricultura sintrópica e florestas comestíveis, onde promove a regeneração de florestas e paisagens para o futuro. Nesta atividade, cultiva não só espécies autóctones como também ideias, partilhando conhecimento com quem, vindo de fora, se interessa por esta abordagem agrícola e ecológica.

Filipe Cardinal


Agradecimentos:
Filipe Cardinal, pelo tempo e pelo conteúdo fotográfico dispensado para este artigo.
Marco Cunha, pelo conteúdo fotográfico dispensado para este artigo.
Pedro Rodrigues, pela fotografia para a capa deste artigo.

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