João “Animado” Ferreira: “Acho que quem abre uma via deve abrir para si próprio”





Foi um dos principais dinamizadores da Serra dos Passos, correu o mundo para escalar e já foi dado como morto (embora esteja bem vivo). João Ferreira, conhecido no meio como Animado, tem 53 anos e sustenta o vício da rocha dando aulas de Educação Física. Dividimos a nossa conversa em 14 capítulos, para dar a conhecer um pouco da sua preenchida vida.
(Animado, vivo, em La Pierre d'Orthaz)
CAPÍTULO I: DECLARADO MORTO NO CASAMENTO
No início dos anos ‘00, fui ao casamento de uma colega da minha mulher, e começaram a contar histórias sobre o João Animado. O engraçado era que as histórias tinham um fundo de verdade, mas eram exageradas. E algumas nem eram comigo, tinham-se passado com outras pessoas. Por exemplo, havia lá uma história sobre uma queda que era com o Carlos Gomes – que foi presidente da federação [FPME - Federação Portuguesa de Escalada de Competição] durante muito tempo –, mas já estava atribuída à tal personagem, ao Animado. O melhor foi a história final, onde eu morria.
No fim, eu tinha ido para os Alpes escalar. E, curiosamente, eles nunca escalaram mas sabiam o nome da La Pierre d'Orthaz, que era onde nós acampávamos, no início, em Chamonix, por ser permitido acampamento livre e selvagem. E tinha lá boulder bem fixe, e bem duro, que a malta costumava escalar. Na altura, eu teria ido fazer uma via qualquer, em solitário, e nunca mais teria voltado, tendo ficado lá a minha tenda. Era assim que acabava a história. Eu decidi calar-me, deixar continuar… o meu filhote, pequenino, é que depois disse “ó pai, não és tu o Animado?”. E eles ficaram super empolgados, enquanto eu tentava explicar que aquilo não era bem assim… Quando dei conta, eles estavam a telefonar aos colegas a dizer que o Animado afinal estava vivo. O meu filho desbroncou-se, mas eu ia deixar a coisa continuar. Foi engraçado porque as histórias todas concentravam-se à volta daquela personagem do Animado. E eu também tinha uma história engraçada.
CAPÍTULO II: DORMIR À JANELA
Quando andava na faculdade em Vila Real, vivia numa casa com pessoas de vários cursos, todos escaladores. Era um grupinho que vivia para a escalada. Mas antes disso, vivi num apartamento só com estudantes, e houve uma altura em que nevou, e eu achei um piadão àquilo. Como tinha acabado de comprar um saco-cama novo, fui dormir para a varanda. E o pessoal achou aquilo tão excêntrico que quando eu cheguei no dia seguinte a casa, a cama tinha desaparecido do meu quarto. Mas eu não dei o braço a torcer. O que é que eu fiz? Pus uma corda à volta da casa-de-banho, que era uma casa-de-banho interior, tinha uma janelinha, fiz um auto-seguro e comecei a dormir no lado de fora do parapeito de uma janela com cerca de 40cm e no sexto andar. Dormi três meses naquele parapeito. O pessoal achava aquilo o máximo. Cheguei a ter professores da universidade que passavam pelo prédio só para me ver a dormir. E malta que ia para os copos depois ia-me lá chamar.
(Animado na via Garrafas das Escarpas do Corgo)
CAPÍTULO III: O INÍCIO
Eu escalo há quase quatro décadas. Em Vila Real, muita gente estava ligada à modalidade e escalava, uns mais, outros menos. Foi lá que comecei a escalar a sério e a dedicar-me. Juntávamo-nos todos os dias à noite, lá na sede do Grupo de Montanhismo de Vila Real. Não havia telemóveis, não havia nada. Íamos treinar lá para a parede dos bombeiros, tal como a malta do Porto ia escalar para debaixo da Arrábida, onde cheguei também a fazer alguns treininhos com o pessoal.
Na altura, Vila Real estava bastante à frente, pelo menos tinha essa ideia. Tivemos a sorte de ter lá o Eric Rigolo, que era um indivíduo francês que escalava com o Patrick Edlinger. Escalava forte e tinha uma mentalidade completamente diferente da nossa. Foi lá que a malta viu pela primeira vez uns pés de gato. Nunca se tinha visto uns pés de gato, o pessoal escalava de botas ou de Sanjo.
O Eric abriu vias como a Garrafas e a Sacanórios. Vias que se não eram das mais exigentes da altura, andavam lá muito perto. Lembro-me de o Sérgio Martins com um grupo do Porto fazerem expedições a Vila Real para tentar as vias que ele equipou lá. Ele desenvolveu muito a escalada em Vila Real, que nessa altura em alguns aspetos estaria um bocadinho à frente. E essa também foi uma das razões de eu ter ficado a viver lá, porque eu sou de Fátima. A primeira vez que eu escalei na Redinha havia zero vias. A primeira vez que fui ao Vale dos Poios havia duas vias - a Paulo’s e outra de vários lances do outro lado do vale.
(O Chefe, na Serra dos Passos, uma via aberta por Animado e Abel Fortuna)
CAPÍTULO IV: A PASSOS LARGOS
Quem começou a escalar quando eu comecei, tinha de ter veia aberturista e começar a explorar, senão fazia duas ou três vias a vida toda. Graças ao Eric e ao primeiro livro de escalada que nos apareceu nas mãos, do George Meyers - Yosemite Climbs - a rock climbing guide to Yosemite Valley -, nós começamos a aprender sobre aquilo. Acho que éramos os únicos no país a chamar baudrier aos arneses. Havia também um bocadinho de clubismo, e eu fui dos primeiros a deixar-me disso e a começar a escalar com malta de Coimbra e do Porto. Começamos a juntar-nos muito mais e a sair. Na altura, o grupo era o [Abel] Fortuna, os Alegres, o Fé, o Saraiva, o Hélder Bernardo, a quem nós chamávamos o “filósofo”, todos nós tínhamos alcunhas.
A Serra dos Passos já estava debaixo de olho há muitos anos. A primeira via que equipei foi a Pinturas Rupestres com o Fortuna e o Luís Saraiva, em ‘94, poucos meses antes tínhamos aberto, sem colocar material nenhum, o diedro ao lado da “Cria de Cão”. Foi a primeira coisa que se fez lá. Antes disso, tínhamos explorado aquele canhão que há por cima de Passos. Quando íamos para lá, passávamos pela casa do guarda. Sempre tivemos a preocupação de nos darmos bem com os habitantes. Passávamos por lá e, das primeiras vezes, oferecíamos umas garrafas de champanhe e de vinho, sempre ali a subornar a malta [risos].
Começamos nesse canhão e ainda há por lá uns parabolts. Depois, eu e o Paulo Roxo, abrimos umas coisas interessantes, só que deixamos de escalar lá por duas razões: porque parece que há um assentamento da Idade do Bronze ou da Pedra; e por causa das pinturas rupestres. Nós tivemos cuidado, entretanto alguém equipou e parece que deu problemas. Por vezes, é preciso andar de pantufas para não nos proibirem, porque proibir é sempre mais fácil.
(Animado com as míticas calças de licra, na Serra da Arrábida)
CAPÍTULO V: A BANDA DE ROCK E AS CALÇAS DE LICRA
Nós aprendemos uns com os outros, à base de muito erro e de muita asneira. E de muita sorte para não nos aleijarmos. Uma coisa que me agradava bastante era o facto de que para nós só havia o escalar. Saíamos de Vila Real de bicicleta, porque não havia carro, e íamos escalar para as Fisgas de Ermelo, parando para fazer boulder, porque para nós era tudo escalada. As primeiras vias que começamos a abrir foram lá. Havia muito aquela mentalidade de abrir debaixo, por causa dos livros de Yosemite.
Houve gente que encontrou material antigo nosso, porque como não tínhamos material para furar, quando tínhamos de abandonar, chegámo-lo a fazer com plombos, aqueles chumbinhos que se esborracham na parede. Quando não conseguimos meter mais nada.
Também nos metíamos no comboio e íamos para a Régua, com as famosas calças de licra. Chegavam-nos a perguntar se éramos uma banda de rock. E depois íamos à boleia até ao Varosa, onde fazíamos lá algumas vias. No fundo, corríamos aquilo tudo à procura de zonas novas, saíamos muito, e escalavamos com a malta de fora para aprender. Mas grande parte dos primeiros ensinamentos foram do Eric, e uma das coisas que ficou, foi a história de mesmo em zonas supostamente de escalada desportiva, nós nunca equipávamos as fendas. Eu acho que isso deu uma escola terrível para outros voos que a malta queria fazer. Assim como eu sempre fui defensor de deixar ficar as vias conforme o aberturista deixou. Acho que cada um deve avaliar a via, se está na sua capacidade ou se não está, se quer arriscar ou se não quer, se acha que é para ele ou não é, mas acho que deve haver vias para toda a gente. E acredito que não devemos ter só as chamadas vias higiénicas, as vias de prazer, como lhes chamam.
(Via Esporão, nas Escarpas do Corgo, aberta por Animado e José Alegre)
CAPÍTULO VI: BREVE REFLEXÃO SOBRE ABERTURAS
Eu sou muito egoísta. Acho que quem abre uma via, deve abrir para si próprio. Há espaço para toda a gente. E depois, quem repete, deve fazer o mesmo. Mas há casos e casos.
Por exemplo, não se vai agora abrir uma via no meio do Microondas, como se abriu a primeira via lá, uma via artificial, exposta, seja o que for. Há sítios que não têm nexo, obviamente. Mas numa zona relativamente virgem, abres uma via à tua maneira e eu acho que se deve respeitar. Ainda por cima, porque depois a via deixa de ser do aberturista, passa a ser da comunidade.
Houve gente que treinou e se esforçou muito para fazer aquela via, ao longo de gerações. Acaba por ser injusto que, de repente, uma geração ache que deve mudar. Uma coisa é, por exemplo, haver uma fendilhona no meio da Nossa Senhora da Estrela, lá em cima na Redinha. A primeira vez que a fiz era a material, mas era a única ali, se calhar não tinha nexo estar lá. É um caso pontual. Na altura, falou-se com os aberturistas, com a comunidade e acabou-se por equipar.
Há que respeitar a história. Assim como não se vai agora pôr parabolts de cima a baixo numa via como a Rabadá, no Naranjo de Bulnes. Mas também não sou contra fazer-se como se fez com outra via ao lado, em que alguém decidiu abrir uma via com um estilo mais desportivo. Cabe lá tudo. Acho que se deve manter a essência da via, porque eu lembro-me de quando comecei a escalar vias em Vila Real, e algumas eram marcos, o pessoal treinava duro mentalmente para as fazer.
(Animado em Teverga, Astúrias)
CAPÍTULO VII: ESPANHA, FRANÇA, TUDO
Comecei a ir para fora desde o primeiro dia que comecei a escalar. Para Espanha, França e Marrocos. Logo nos primeiros dois anos, acho. E também fui aos Estados Unidos e à América do Sul.
Quando estivemos nos EUA, em 2000, o que nos correu melhor, por incrível que pareça, foi o boulder. E na altura, apareceu lá o Sérgio Martins e o Francisco Ataíde. Aquilo não correu propriamente bem, porque apanhámos sempre mau tempo, e muito trânsito nas vias. Era uma coisa que não estávamos preparados para apanhar, não estávamos preparados para ter que pôr as coisas na base da via e esperar quatro ou cinco dias para arrancar. À nossa frente estavam uns japoneses que tinham comprado o material todo novo lá e ficaram tempos eternos para fazer o primeiro lance. Os Estados Unidos acabou por ser uma experiência bastante interessante a nível do boulder. Eu e o Sérgio Martins tentámos fazer o primeiro V5, a ver quem conseguia fazer, e depois o Francisco Ataíde a fazê-lo com uma perna partida, à nossa frente.
Nós estávamos acampados no Campo Base, ao lado do Midnight Lightning [no Camp 4, em Yosemite]. Na altura ainda tentamos aquilo e chegava à beirada do mantel, mas aquilo é alto, e nós, nos primeiros anos, não tínhamos crashpads nem nada, e o chão era uma laje. O movimento lá em cima é um mantel estranho. Por vezes, a malta tinha que ir à volta atirar o saco de magnésio, ou atirá-lo de baixo, porque a parte de cima não era dada.
(Animado no Alvão, com um crashpad pela primeira vez)
CAPÍTULO IX: A LIÇÃO
Isto também foi uma boa lição de humildade, que me deu prazer. Nós fomos ao The Cookie Cliff, onde há uma série de vias famosas, e decidimos que queríamos fazer uma via de dois lances. E nós até somos uns gajos impecáveis nas fendas, fartos de abrir na Serra da Estrela. Então estávamos cinco, vários oito gradistas, e acho que um deles até já fez 9a. Entre todos, vimo-nos aflitos para fazer o primeiro lance. Ia cada um fazer um pedacinho do primeiro lance. E vêm dois velhotes de barriga cá de baixo, com os pés-de-gato calçados, chegam ao pé de nós, põem-se a olhar para a via e perguntam “podemos?”. Arrancaram, e fizeram aquilo com três pontos. Aquilo é super técnico, aquelas fendas são super técnicas. É como ires à Pedriza. Vais à Pedriza, e andas lá a bater-te nos 6a ou nos quintos - se não estás habituado -, e vês lá aqueles velhotes de barriga a fazer 6c, 7a, 7b, até mais. Onde eu gostei mais de estar foi em frente à The Nutcracker - não me estou recordado do nome, mas era as catedrais -, e tinha lá uma via que eram vários lances da mesma fissura e do mesmo tamanho perfeito para a minha mão (e isso também é uma coisa que conta, tu tens facilidade em fazer mas o teu colega vê-se aflito). Adorei. Lembro-me que era o friend número 2, sempre, reuniões e tudo. Adorei aquela via.
CAPÍTULO X: COZER UMA PERNA NO PERU
Como país, não gostei muito dos EUA. Culturalmente, eu achei aquilo muito estranho, não encaixa no meu perfil. Ver um indivíduo de fato e gravata, com uma arma, ou a maneira como o Francisco Ataíde foi tratado no hospital... Como país mais desenvolvido do mundo, eu achei-os muito pouco desenvolvidos. Atraiu-me muito mais o Peru, achei muito mais interessante e mais seguro, por incrível que pareça, mesmo tendo apanhado o golpe de estado do Fujimori, em 2001. Lá fizemos o [Nevado] Pisco, mas tentámos muitas montanhas. Lá também tivemos azar porque apanhámos o La Niña. Ou seja, chovia em altitude, e as condições estavam deploráveis.
Depois o Grilo aleijou-se, caiu num buraco do esgoto que estava aberto. Ficou bastante doente, demos-lhe pastilhas, ficou de diarreia quase o tempo todo. Nós íamos para o hospital, mas mudamos de ideias, porque o hospital tinha muito mau aspecto. Levamo-lo para o quarto, e cozemo-lo no quarto. Nós ainda escalámos, ainda fizemos umas coisas e, curiosamente, fartei-me fazer boulder também. Mas aí fui o único, porque não tive a companhia de ninguém. Em Huaraz, onde nós estávamos, por cima havia uma zona de boulder que tinha sido desenvolvido por um belga, julgo. E eu achei um piadão àquilo e fomos todos para lá no primeiro dia.
Uma pessoa para a montanha tem de ir com tempo, não pode ir de férias. Foi uma conclusão que eu cheguei. Eu depois deixei de fazer tantas expedições exatamente por isso. Porque começava a fazer contas e uma pessoa em um mês e meio, dois meses, escala três dias, e eu não gosto disso.
CAPÍTULO XI: RECONQUISTAR O VELHO CONTINENTE
Por isso comecei a dedicar-me muito mais à Europa, a escalar e a abrir vias. Há tanta coisa que se pode fazer aqui. Eu e o [Paulo] Roxo chegámos a tentar abrir vias novas nos Alpes, mas não aconteceu, porque as condições estavam terríveis. E depois chegámos à conclusão por que é que a via estava assim, quando descobrimos uma fotografia da montanha, num portal daqueles da Suíça, e a montanha estava completamente diferente. Ou seja, tinha havido uma derrocada ao estilo dos [Les] Drus que limpou aquilo tudo. Nós estávamos a abrir aquilo, e fizemos lá um diedro com 40 metros, bastante giro e interessante, mas depois em cima começámos a perceber que o diedro todo mexia. Tanto é que metemos uma reunião ao lado. Apanhámos uma coça daquelas.
Também tivemos umas aventuras porreiras nos Alpes, como andarmo-nos a esconder do helicóptero que andava à nossa procura, porque era proibido acampar lá, enquanto eu e o Roxo nos escondíamos debaixo de uma pedra.
(Animado em Vento do Norte, na Serra do Alvão)
CAPÍTULO XII: CONFUSÃO NO ALVÃO
Ninguém sabe que fazemos boulder no Alvão e essa é uma das grandes razões da pouca divulgação da zona. Numa das primeiras reuniões que tivemos com o Parque Natural do Alvão, reunimos com o grupo de montanhismo. Eu estava na direção, como representante da escalada, e falou-se sobre acampar. Eles disseram que era proibido e nós concordámos, mas dissemos que o bivaque devia ser permitido. Eles perguntaram o que era “isso do bivaque”, e nós explicamos que podia implicar montar tenda ou não, ou montar depois do pôr do sol, e desmontar antes do nascer do sol. Também explicamos que se pode permitir o bivaque sem tenda. E eles disseram-nos que sim. Quando nos mandaram o documento do parque, já mais ou menos formulado, lia-se “proibido acampar e bivacar”.
A partir daí, eu nunca lhes expliquei o que era boulder. Num parque tão pequeno como o Alvão, não se pode ter uma mentalidade como aquela que se teria num parque no meio da Sibéria, em que a próxima população está a 4 mil quilómetros de distância.
Outra situação caricata: numa reunião da Junta de Freguesia, eles propuseram acabar com o pastoreio. Quem é que vai para uma aldeia cabreira, onde as pessoas vivem do pastoreio, dizer que é boa ideia proibi-lo? A serra é como é por causa das cabras.
Aliás, temos até a nossa famosa equipa de resgate caprino. Já lá fomos buscar várias cabras às Fisgas de Ermelo, porque temos uma boa relação com a comunidade. Há vídeos a tirarmos as cabras lá do meio dos patamares. E, por diversas vezes, eles telefonaram-nos para ir buscar cabras que estavam há 15 dias no mesmo patamar e não saíam. Aquilo era uma aventura. Já tínhamos até uma técnica para apanhá-las, porque ao aproximarmo-nos delas, normalmente, fogem. Por vezes, até saltavam para o precipício. Conseguimos resgatar várias cabras. Acho importante termos uma boa relação com os habitantes em todo lado.
Eu acho que não faz sentido nenhum [ter políticas destas]. Nos meus últimos anos de universidade, julgo que em ‘94 ou ‘95, dava aulas de opção de lazer e fiz um projeto. A maior parte das pessoas não sabe, mas há setores desportivos equipados nas Fisgas [de Ermelo], com 40 vias ou 50 vias. Agora estão completamente abandonados, mas há, bons e agradáveis. Só não são setores familiares, porque alguns deles estão a meio da fraga, com um patamar mais ou menos razoável. São para escaladores. Na altura, a proposta que fiz foi vedar a escalada em toda a zona, menos nas três palas grandes, que é o que nos interessa. Para vias desportivas daquelas, temos os Passos, e aquilo é que massifica. Porque para as Fisgas vai escalar, se calhar, 2% dos escaladores de Portugal. É comprometido, se desces tens de subir, não sais por baixo porque em 90% do pé da via tens silvas com seis e sete metros de altura. Se fazes rapel para o meio, nunca mais sais de lá. Ou seja, essas partes é que nos interessavam. É que tens ali o que não tens mais no país. Aquelas três palas grandes – depois eu e o Paulo Morais desenvolvemos mais – é que têm o que nos interessa. Ou seja, segundo a nossa proposta seria permitido escalar ali, com as zonas de nidificação bem marcadas. Foi completamente rejeitada, nem leram aquilo muito bem.
CAPÍTULO XIII: A HISTÓRIA DO MELRO-AZUL
Eu sempre fui apaixonado por aves, e sempre gostei de as observar. Lá em Vila Real, tinha até amigos que escalavam e trabalhavam na universidade, onde faziam monitorização de aves.
Certa vez, o guarda de um parque apanhou-nos a escalar, lá numa via chamada “Os Marretas Marginais”. Eu estava a escalar e a saída era um passo de boulder, mesmo no final de uma pala. Tinha de se meter calcanhar e tudo. Eu meto o calcanhar para cima, rodo e quase bati no indivíduo que estava lá, que se assustou quando me viu. O Morais estava em baixo, e não me ouvia bem. Eu recolhi a corda, comecei a fazer a segurança, e ele pergunta “o que é que você está a fazer aqui? Você não sabe que é proibido?” E eu: “é proibido? Se é proibido, o senhor vai-me dizer o artigo da lei que proíbe e a respectiva coima, porque é assim, não é?”. E ele olhava para mim e repetia que era proibido e que ia falar para Braga. Depois disseram-lhe que era proibido, mas porque estava em fase de estudo. Então, não era nada proibido. E depois o indivíduo começa a dizer: “você sabe que aqui há aves únicas no mundo? Há aqui o melro-azul!”, e eu “Não é o único no mundo, porque esse há lá ao pé da minha casa”.
E ele: “mas é azul, não é preto!”, e eu: “eu sei, é o melro-azul”. E há, no Corgo há o melro-azul. Nos Passos, se estiveres com atenção, vês muitos melros-azuis. Depois passou um falcão peregrino, e ele “e há aqui estes falcões peregrinos! Não vê o falcão?”, e eu “por acaso, é uma fêmea”. E ele: “como é que você sabe?!”, ao que eu respondo que é de uma uma cor diferente e é maior. Ou seja, só para demonstrar que, às vezes, a ignorância está mais do lado deles do que do nosso lado.
CAPÍTULO XIV: CONTACTOS (MODERADOS) COM A NATUREZA
Nas Fisgas [de Ermelo], a Câmara [Municipal] de Mondim quer instalar uns passadiços a meio da fraga. Ou seja, não se pode escalar, mas pode-se espetar a meio da fraga uma estrutura que tem um impacto monstruoso, que vai atrair ali pessoas que nunca mais acabam, e com certeza que vão cobrar a entrada. Há coisas que não fazem sentido.
Aqui há tempos, no Parque Nacional do Gerês, numa zona que queriam proibir a escalada, também fizeram lá um concerto com milhares de pessoas. Depois desculparam-se dizendo que deram grandes apoios para a preservação da águia real. E eu até comentei que devem ter dado 100 euros a cada águia para ir comer fora. Quer dizer, é um contrassenso. Se mete dinheiro, já se pode.
Dou outro exemplo: eu trabalho com a unidade de multideficiência na escola, e fazemos muitas atividades com os miúdos. Houve uma altura em que juntámos vários grupos para umas atividades no Douro. Em reunião com os responsáveis do Parque do Douro Internacional, falou-se sobre o que se podia ou não fazer. Eu queria fazer coisas de escalada, muito simples, e eles nem sequer nos deixaram ir de canoa para o rio. E eu confrontei-os, porque os barcos, cheios de camones bêbados a fazerem barulho, não prejudicava nada, mas meia dúzia de miúdos com umas canoas a passar de um lado para o outro do rio, sim. Ele disse que as aves não viam os barcos como uma ameaça, mas que podiam ver as canoas como uma ameaça. E não nos deixaram fazer. E na Serra da Estrela está igual.
De qualquer modo, eu já há muitos anos que me deixei dessas negociações, porque cheguei a um ponto da minha vida em que decidi que só queria escalar. Neste momento, sou federado, e convidaram-me para fazer parte da comissão da escalada em rocha da federação de montanha. Aceitei, mas com a condição de ajudar no que posso, não posso voltar a perder dias e dias a preparar e estruturar cursos técnicos. No entanto, acho que se deve tentar profissionalizar ao máximo quem está a ser remunerado.
(Animado e o filho, Vasco, em Rodellar, Espanha)
CAPÍTULO XV: ASSUNTOS FAMILIARES
Hoje, tentamos passear ao máximo e escalar. Sempre fui muito fanático. A propósito disto, tenho uma história engraçada. Uma vez, o meu filho, depois da creche explicou-nos que um amiguinho dele não escalava. E que o pai também não! Porque no nosso círculo toda a gente escalava, ele não conhecia ninguém que não escalasse. Para ele foi um choque descobrir que havia quem não escalasse. E eu sempre tive um “rocódromozinho” em casa. Em estudante, eu tinha duas barras e quatro placas, cada vez que mudava de quarto, levava aquilo comigo. Aquilo montava-se em qualquer canto e ficava impecável. Durante muitos anos, quando estava a chover, era onde a malta se juntava sempre.
Eu gosto de competir, e nem é pela competição em si, porque eu não sou muito competitivo, sou mais cooperativo. Acho que é por isso que sempre me dei bem em vias de clássica, mais comprometidas, com um grupo de dois ou de três, e em expedições, do que em competição. Mas eu gosto do ambiente, gosto do desafio.
Sou um pouco como o meu filho. Houve uma altura em que o levávamos às competições porque ele nos pedia, e eu e a mãe começámo-nos a aperceber que a partir de certa altura, o miúdo deixava de escalar. E percebemos que era porque ele não queria ir à final. Ou seja, ele escalava no contest e gostava, mas não gostava daquela fase de entrar um de cada vez, e de estar sozinho enquanto toda a gente olhava para ele. Nesse aspeto, sou um bocadinho como o meu filho. Enquanto houver competições para os velhotes, eu hei-de ir sempre que puder.
(Animado a fazer escalada mista em Benasque, Espanha)