Niky Ceria: “O bouldering transpira humanidade”

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Foi já no ano passado, enquanto procurava informação sobre Grampians, na Austrália, que encontrei um blog já desativado recheado de registos fotográficos fanáticos, relatórios de viagens a zonas de bloco um pouco por todo mundo e devaneios sobre a ética. Mas o que mais me intrigou foram as visões partilhadas e a narrativa do autor. A figura de Niccolò Ceria alimentou mais a minha curiosidade à medida que fui encontrando o seu material mais recente, que confirmou aquilo que me prendeu à sua figura: a visão intimista e humana do bouldering. Nesta conversa, o escalador transalpino, explica-nos como as suas motivações vão muito além do processo do encadene, como a imaginação desempenha um papel importante no seu trabalho e como os fatores externos à escalada podem comprometer a sua verdadeira essência.
Niky é um exemplo de alguém que quando escala, usa tanto do seu corpo como da sua alma.
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(Niky Ceria no Traumshiff - Zillertal (AUT))
Nascido num país rodeado de montanhas, foste sobretudo atraído pelo bouldering em comparação com outras disciplinas. De onde surgiu essa preferência?
Essencialismo e complexidade ao mesmo tempo. Embora raramente tenha sentido atração pelas montanhas, o bouldering dá-me a possibilidade de ter todo o percurso onde a experiência se desenrola dentro do meu campo de visão: consigo captar a linha e visualizar nitidamente as ligações entre cada detalhe mais profundo. Por isso, acabo por apreciar mais as formas que os blocos têm e desenvolvem.
Gosto da variedade e das possibilidades que o bouldering oferece, especialmente quando estas estão ligadas, de certa forma, à tua criatividade interior. Outra preferência diz respeito aos movimentos e ao estilo da escalada: muitas vezes curtos, essenciais, dependentes das condições, difíceis e que exigem concentração. Gosto de ver aquele pequeno conjunto de presas e formas como uma escultura, e para mim é difícil encontrar essa qualidade em outros terrenos de escalada, especialmente de forma consistente para cobrir uma sequência completa de movimentos.
(Niky Ceria - Ticino (CHE))
Algo que te define como escalador é a forma profunda como te envolves na história e nas figuras que desenvolveram as linhas que planeias escalar. O quão importante é para ti a humanização do bouldering? A falta de informação das linhas alguma vez diminuiu o teu interesse por elas?
Tenho de te dizer que, por vezes, acontece o contrário: a falta de informação e o facto de a comunidade tender a ignorar certas linhas por preconceitos parvos - ‘The Rail’, ‘Emotional Landscapes’ e ‘Stepping Stone’ são alguns exemplos - tornam-me mais curioso e mais motivado a descobrir o que está escondido. Mesmo que esta nunca seja a principal razão que me leva a um problema específico, gosto de questionar por que motivo algo é tão ignorado.
O bouldering transpira humanidade. Cada bloco, cada escalador e cada sequência são histórias diferentes que não se podem comparar entre si e têm detalhes bastante únicos. Por isso, a parte humana é o que faz toda a diferença e a que mais te diz sobre uma personagem, um pedaço de rocha, uma zona, um processo...
Desporto, treino e a capacidade de executar são para mim meios para chegar a este lado mais rico do bouldering: têm o mesmo valor que ter muitos crash pads para proteger uma queda ou saber planear uma jornada difícil; são todos parte da mesma caixa de ferramentas para viver uma forma de escalar que está cheia de histórias humanas, diferentes pontos de vista, arte e variedade na forma como nos expressamos.
Compreender este ponto foi crucial para mim. Quando a minha motivação mudou para este tipo de investigação e se tornou o verdadeiro significado da minha escalada, descobri que o meu bouldering estava totalmente alinhado com o que acreditava.
(Niky Ceria no La Merveille - Fontainebleau (FRA))
A imaginação é uma parte essencial do teu trabalho? Alguma vez entra em conflito com as tuas expectativas?
A expectativa pode ser um grande inimigo nos dias de hoje.
Quanto mais se aproxima dessa espécie de conceito racional de perfeição, mais fácil é ficar desiludido. Por isso, cabe-nos decidir como usar certos tipos de ferramentas. As tendências atuais, muitas vezes construídas com o excesso de conteúdos digitais (reels, que não são reais), apagam o que está por trás de um vídeo: estados de alma, esforços, preparação, visualização, criatividade, aproximações, realidade, compromisso, emoções e muitos outros aspetos. Lidar com este tipo de “Realidade Aumentada” é por vezes um trabalho árduo, especialmente porque a verdadeira realidade será sempre diferente, mais lenta e mais baseada no tempo humano.
A grande armadilha de cederes a esta tentação é o risco de que parte, ou a maior parte, da tua motivação possa surgir de fatores exógenos e, portanto, de algo que vem do exterior. A minha experiência pessoal é que quanto mais pontos interiores e endógenos encontrarmos para construir o nosso caminho, melhor viveremos a escalada porque será finalmente enriquecida por um significado mais profundo. Por isso, isto leva-me a aprender cada vez mais a usar os conteúdos que existem apenas para informação pura. Nem sempre é fácil separar o que pode ser útil do que pode transformar-se numa expectativa tóxica; evitar esta última parte pode compensar bastante. Muitas vezes evito pensar que tenho sempre o beta pelos vídeos (especialmente nas primeiras sessões) porque pode contaminar o meu processo para uma solução que funcione para mim. Por isso, muitas vezes acabo por encontrar betas diferentes nos clássicos ou formas alternativas de resolver alguns passos. É muito interessante e faz-te melhorar bastante a longo prazo.
(Niky Ceria na primeira repetição de Die Versonrgungslinie. Linha aberta por Bernd Zangerl - Himalaias (IND). Foto: Bernd Zangerl)
Outro ponto que vale a pena mencionar é que 90% dos blocos mais conhecidos que repito são precedidos por uma validação da realidade: uma caminhada até ao bloco, sem crash pads, nem pés-de-gato só para perceber como é, numa abordagem sem preconceitos e tentar eliminá-los caso existam. Remover preconceitos externos é definitivamente muito mais útil do que ter toneladas de informação e precisar de a processar e filtrar. Isto deixa muito mais espaço para a imaginação, que finalmente pode desempenhar o seu papel na experiência.
A imaginação é fundamental se alguém quer encontrar os seus próprios caminhos. Para mim, ao explorar novas zonas ou novas linhas, a imaginação torna-se não só importante, mas a verdadeira protagonista da experiência. Talvez até o ingrediente mais genuíno e que te acompanha desde o início até ao fim do processo. A expectativa é inversamente proporcional à imaginação. Quanto menos tens da primeira, mais encontrarás da segunda. As expectativas frequentemente proporcionam momentos de felicidade instantânea e efémera, e acabam por se assemelhar a ilusões, mesmo que possam ser doces a curto prazo.
Na imaginação o tempo desacelera, os significados são mais endógenos e a satisfação de algo que foi totalmente imaginado pode durar para sempre.
(Niky Ceria no FA de Indice Obbligazionario - Valle d’Aosta (ITA))
Antes das tuas viagens para escalar fazes muita investigação. Alguma vez foste surpreendido pelo que encontraste? Podes partilhar alguns lugares que superaram as expectativas?
Felizmente, aprendi a lembrar-me de todas as viagens que fiz pelo que elas foram na vida real, e as minhas memórias remetem para o que realmente vivi. Por isso, não existe uma correspondência real com a expectativa. Não só porque agora tento começar a partir de uma tela em branco, mas também porque, quando algo está feito e é passado, tendo a contemplá-lo pelo que foi. Não é muito importante para mim tentar voltar atrás no tempo para aprofundar ou relembrar se o que vivi era realmente o que estava à espera.
Também tenho algumas dúvidas sobre o facto de tudo ter de ser agradável nos dias de hoje. Para dar um exemplo, fiz uma viagem ao Japão em novembro passado. Foi difícil para mim e não foi agradável. Mas quero voltar para reviver o desconforto que me chocou, e navegar novamente nessa estranheza. Quando voltei a casa, senti que foi uma experiência dura mas gratificante, porque consegui olhar para mim próprio de uma forma muito diferente.
(Niky Ceria no FA de Ghost of the Navigator - Valle d’Aosta (ITA))
Desenvolveste algumas áreas, mas normalmente valorizas mais linhas individuais, especialmente as estéticas. Que características procuras quando prospecionas novos problemas de boulder?
Creio que mencionei em alguns vídeos que, ao analisar uma linha, tento considerar cerca de 6 a 7 pontos essenciais, como a qualidade da rocha, a linha, o aspeto, as presas, os movimentos e o ambiente. Cada um deles tem várias subcategorias. Mas duvido que isto possa ser algo exaustivo e claro sobre a minha investigação, especialmente sobre o significado dos meus dias de escalada. No fim de contas, cada pedaço de rocha tem de me apaixonar e emocionar. Claro que ter muitas destas características que mencionei, num único cenário, pode ser gratificante, mas, no fundo, sinto acho que a lista de pontos é também demasiado racional e metódica para algo que está tão ligado ao que sinto, às minhas emoções e à minha alma. Não creio que possamos medir isso ou servi-lo num menu; também estou bastante preocupado com a necessidade desesperada das pessoas em medir coisas pessoais. O bouldering é uma delas na minha opinião. Não tem de ser medido.
(Niky Ceria no FA de Biotronic - Castle Hill (NZ))
Num vídeo do Sam Lawson, mencionaste que, para ti, só o Biotronic (NZ) poderia igualar a sensação de escalar o Bombadil (UK). Um foi uma primeira ascensão e o outro uma repetição. O teu coração bate de forma diferente quando abordas as tuas próprias linhas comparado com quando fazes repetições?
Os cenários e contextos que a etiqueta “FA” esconde são bastante notáveis.
Fui o primeiro escalador a fazer top out no Biotronic, mas foi-me apresentado como um projeto notório: não o explorei nem encontrei, não precisei de o limpar, visualizar ou imaginar a linha e algumas outras partes de todo o processo de FA não estavam realmente incluídas. Acho que também tive algum beta explicado por um amigo. Os FAs em que participei com um processo de A a Z (onde A é sair para uma caminhada e ver se consegues encontrar blocos e Z é fazer top out em algo que não teria sido novo se não fosse pela tua visão/investigação/trabalho) normalmente têm um processo completamente diferente do Biotronic, por isso não diria que o abordei como uma das minhas próprias linhas.
O Biotronic foi especial por causa de uma série de fatores únicos: foi o primeiro projeto que me foi mostrado na Nova Zelândia e já me tinha sido mencionado antes de planear a viagem. Fiz a aresta final de baixo. Demorei 4 dias a perceber o movimento de equilíbrio e acabei por ficar satisfeito. Naquele dia, a meteorologia trouxe as 4 estações mais de uma vez, com períodos de neve, e por isso ninguém esperava ser possível que a placa fosse escalada, o que acrescentou um fator extra surpreendente e gratificante. Eu era mais novo e a energia daquela viagem era especial. Fui um dos primeiros escaladores europeus a explorar a ilha... Tantas coisas se juntaram para criar um dos momentos mais especiais - se não o mais especial - da minha carreira. Também me pergunto se conseguiria fazer algo assim outra vez...
Provavelmente, o facto de, graças à minha ascensão, um dos projetos mais longos e ambiciosos da ilha ter sido finalmente concluído, adicionou mais importância à conquista, e este é um fator que a repetição do Bombadil não teve. Mas o que queria mencionar no vídeo é que Bombadil foi, sem dúvida, a experiência mais especial que já tive ao repetir um bloco.
Não pensei muito se o meu coração bate de forma diferente, mas provavelmente esses processos de A a Z, que mencionei antes, podem ser bastante profundos. Não tenho a certeza se me quero comprometer a comparar duas formas tão diferentes de abordar o bouldering.
(Niky Ceria na primeira repetição de Bombadil - Christiambury (UK). Foto: Dan Varian)
Ao longo dos anos, tens viajado extensivamente pelo mundo, mas pareces especialmente atraído pelo Reino Unido. O que te faz regressar?
Tenho vários regressos ao Reino Unido, mas ainda mais viagens para Basilicata, Austrália, Red Rocks, Fontainebleau, Norte da Europa... Acho que me perguntam mais sobre o Reino Unido porque é para onde tenha viajado mais ultimamente. O que me leva a crer que as pessoas tendem a lembrar-se apenas do que aconteceu recentemente, independentemente do que tenha sido feito antes ou mesmo que algo mais marcante tenha acontecido no passado. Dá-me a oportunidade de relembrar a importância de alargar o espectro temporal quando o tema é escalada em rocha. Pelo menos 15 a 20 anos parece-me justo.
Admito que o Reino Unido tem coisas que me são especiais, tal como os locais que mencionei acima. Gosto particularmente de Northumberland: arenito, prados, silêncio, bons acessos, vibes positivas no rocódromo, a visão do Dan Varian, proximidade com a floresta de Kielder e algumas aventuras de bicicleta elétrica... e claro, um punhado de linhas incríveis.
(Niky Ceria no FA de Sua Maestà - Valle d’Aosta (ITA))
Há algum problema de boulder ou zona de escalada que ainda não tenhas tido oportunidade de experimentar mas que te entusiasma?
Sim, ainda há alguns notáveis, tanto em relação a blocos como a zonas. Mas não vou revelar tudo aqui. Ou pelo menos não totalmente. 😊
Posso dizer-te que há imenso tempo que quero ir ao Arkansas e à América Latina.
Numa perspetiva mais local, como alguns amigos me falaram bem de Sintra, poderia ser um bom destino europeu, talvez um dia, caso algum dos teus leitores queira mostrar-me a zona. 😊
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Créditos Adicionais:
Foto de Cabeçalho - Niky Ceria no FA de Aeropressing - Sardenha (ITA). Foto: Rudy Ceria